Episódio 5. Saudosa
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O paulistano Mário Amaral (c.1895-1926) talvez seja a figura mais enigmática do circuito do violão da Velha São Paulo. Há muito pouco sobre ele nos periódicos e nada foi localizado sobre sua vida, apenas que faleceu jovem. Pelas parcas informações disponíveis, presume-se que tenha falecido de tuberculose. Era primo da pintora Tarsila do Amaral e sobrinho de Antonio Estanislau do Amaral, compositor da valsa Panamby, que será abordada no próximo episódio, número 6.
Em 1922, Menotti Del Picchia descreveu um sarau no célebre ateliê da artista Tarsila do Amaral. Naquela ocasião, ele, Freitas Valle, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti se reuniram para escutar o violonista Mário Amaral. Menotti descreve com riqueza de detalhes as músicas, composições próprias, e as reações da pequena e seleta audiência. Trata-se de um importante relato que coloca Mário Amaral no centro da intelectualidade modernista paulistana, num claro deslocamento da posição de instrumento de malandro comumente atribuída ao violão.
No largo atelier […] dessa esgalgada e linda artista Tarsila Amaral, o violão de Mario evocava toda a música da raça…Absortos, olhar vago, Freitas Valle, o poeta estranho das Baladas; Mário de Andrade, o longo Pierrot taciturno dos desvarios da Pauliceia; Anita Malfatti, a incompreendida criadora do Homem Amarelo; Helios [Menotti Del Picchia] desalteravam sua sede de beleza no cascatear cristalino de harmonias que brotavam, como um jorro vivo, do violão mágico e sonoro […] Nenhum rumor profano fora o religioso silêncio, cheio apenas pela música divina que as mãos nervosas de Mário Amaral acordavam. Eu jamais ouvira uma arte tão grande num instrumento tão humilde. O violão – velha paixão do meu lirismo – transfigurava-se, como se nele cantassem todas as emoções humanas. Mário Amaral é um extraordinário artista. Criador, inspirado, senhor absoluto da sua técnica, compôs músicas soberbas[1].
Em 1924, ele mereceu um grande artigo escrito por Eustáchio Alves, violonista que atuou no Rio de Janeiro e foi aluno de Josefina Robledo. Alves, no texto que recebeu o título “Um Grito D’alma: Impressões sobre o violonista brasileiro Mário do Amaral e Souza”, dirigindo-se a Amaral, iniciou uma digressão sobre sua própria ligação com o violão: “você não pode calcular a minha satisfação em ouvi-lo e, para avaliá-la, mister se faz que lhe conte um pouco de história antiga”. Ao citar o período em que foi aluno de Josefina Robledo, Alves comparou Amaral à violonista espanhola:
[…] Ouvi aqueles mesmos acordes cheios, aquela nitidez, clareza, expressão, técnica, enfim, vi alguém que executa e sente o violão como ele deve ser executado e sentido. Creio que foi essa a impressão daquela seleta sociedade em que passamos horas agradabilíssimas […]. Não lhe notei um só defeito, e suas composições podem figurar, sem favor nenhum, dentre as dos melhores autores. […]. Resta agora que você não esmoreça e escreva suas composições para que elas sejam vulgarizadas[2].
[1] Correio Paulistano, 01 de setembro de 1922, p.5.
[2] A Gazeta de São Paulo, São Paulo, ano XIX, n. 5586, 07 set. 1924, p. 6.
Entretanto, a mais curiosa menção sobre Mário Amaral veio de outro Mário, o de Andrade, juntamente com o que parece ser o único resquício de sua obra: a melodia de uma valsa lenta chamada Saudosa, que o poeta paulistano registrou na segunda parte do Ensaio Sobre Música Brasileira (1928), em “Exposição de Melodias Populares”, com o seguinte texto:
Esta valsa em duas partes foi Mário Amaral que fez. Era músico a valer. (…) No violão chegou a possuir um toque virtuosístico. Só executava composições dele mesmo e eram muitas. Dentre tarantelas, prelúdios, peças características etc. só se destacavam mesmo pela originalidade e espontaneidade as peças brasileiras, maxixes, tangos, valsas. Não ficou nada escrito dele, com exceção desta Saudosa, valsa lenta de boa têmpera brasileira, melosa e seresteira como o quê, que ele escreveu por minha insistência e me deu[3].
[3] ANDRADE, Mário. Ensaio sobre música brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006, p. 73.
Em 1924, na Ariel Revista de Cultura Musical, ilustrando o artigo de Manuel Bandeira, “A Literatura do Violão”, há uma foto de Mário Amaral[4], com a legenda: “admirável virtuose brasileiro do violão”. Lembramos que a revista era dirigida por Mário de Andrade. Assim, é possível que, além de uma melodia de Amaral, o poeta paulistano tenha sido responsável também por nos legar uma imagem do seu amigo violonista.
A valsa Saudosa recebeu arranjo (2021) elegante e moderno do violonista e compositor Edmilson Capelupi, que remete às composições de Francisco Mignone. Embora tenha atualizado a linguagem, o arranjo de Capelupi consegue retratar o ambiente seresteiro que a melodia de Mário Amaral inspira, seja na condução das vozes ou na introdução de respostas características dos contrapontos dos tradicionais regionais de choro. Trata-se de uma valsa nostálgica, lenta, composta em tonalidade de lá menor, em duas partes.
[4] Ariel Revista de Cultura Musical, São Paulo, ano II, n. 13, 1924, p. 467.
Ouça o episódio completo:
Voice-over: Biancamaria Binazzi
Dramatização dos trechos dos periódicos: Artur Mattar
Vinheta: Sabãozinho, João Avelino de Camargo, arranjo Edmar Fenício. Violão, Flavia Prando.
Músicas incidentais: Tarsila do Amaral – Rondo d’amour (Elke Riedel, soprano; Durval Cesetti, piano)
Josefina Robledo Capricho Árabe de Francisco Tarrega.
Mario de Andrade, Viola Quebrada (Ivan Vilela e Ary Kerner ) Instrumental SESC Brasil
Concepção, criação, pesquisa e narração: Flavia Prando
Ouça a peça Saudosa no álbum Violões na Velha São Paulo:
Veja no Youtube, a peça registrada em vídeo:
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